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artigo de Marianne Costa para a Folha de S. Paulo

 

Cacique de aldeia Xavante, no Mato Grosso, explica que visitação turística é parte de estratégia

Recentemente retornei de viagem da aldeia do povo indígena Xavante Etenhiritipá, que foi uma das experiências mais lindas e especiais da minha vida. E olha que eu tenho rodinhas nos pés e asinhas nas costas, já diriam meus amigos. Passei alguns dias, o suficiente para perder a noção de tempo, de calendário, sem relógio, celular ou internet, próximo ao município de Canarana (MT).

Viajei de Goiânia para lá numa viagem de ônibus de mais de 12 horas, onde formamos um grupo muito especial, liderados por Israel e Tadeu da Ambiental, e seguimos num ônibus escolar bem antigo, mas perfeito para as estradas precárias que enfrentaríamos por quase duas horas até chegar à Aldeia (pode ser um pouco mais ou menos, mas eu realmente me desprendi deste tipo de controle).

Como profissional do turismo, desde quando saí de São Paulo já me preocupei sobre como poderíamos desfrutar de uma logística mais confortável sob o ponto de vista da experiência do turista, sem nem ao menos ter começado a jornada. Chegando lá e depois de toda a experiência, percebo o quanto fez e faz sentido essa jornada de ida, as longas esperas, o carrega e descarrega de mala, o tira e põe de casacos.

Todos esses aparentes desconfortos para nós, cidadãos urbanos, acostumados ao total controle de tudo, vão nos preparando para essa experiência peculiar: um verdadeiro despir-se de estigmas, preconceitos, valores arraigados, sentidos. Escrevo ainda sem saber se vou conseguir transmitir a profundidade da experiência, que, claro, é tão única e pessoal como a alma de cada indivíduo ali presente.

 

Força e Resistência

Fomos recebidos por Jurandir Siridiwe, cacique e principal liderança da aldeia. Jurandir é um dos que fala um bom português, pois fez parte de um grupo de meninos xavantes que, na década de 70, foi mandado para fora da aldeia para estudar e conhecer a cultura dos “brancos invasores”.

Aparentemente os xavantes se renderam na década de 1940, quando desistiram de lutar com armas e aceitaram o contato “civilizatório” do homem branco. De fato, esta iniciativa fazia parte de uma estratégia que eles entendiam necessária, ou seja, eles precisavam pacificar o branco invasor e, para isso, era necessário dominar sua cultura. Como primeiro resultado, em 1988 tiveram a legalização da reserva, uma das aldeias do território indígena Pimentel Barbosa, onde vivem atualmente 3.200 pessoas.

Xavantes são tradicionalmente guerreiros. Falam e vivem o lema da força e resistência, entre homens, mulheres e crianças. Provavelmente a expressão sem mimimi foi inventada por eles. Sua força e a coragem podem ser observadas em cada detalhe das atividades do seu dia a dia e nos seus relatos. Até os cachorros de estimação são extremamente bravos, excelentes cães de guarda e fiéis aos donos e às casas que protegem.

Jurandir começou nos explicando que a visitação turística é parte da estratégia xavante. Para aquele povo pacífico, guerreiros de verdade estão sempre em guerra e na guerra cada um luta com as armas que tem. E guerreiro que é guerreiro tem estratégia. Os xavantes lutam pela sua sobrevivência, pela garantia do seu direito a terra e à vida.

O principal inimigo dos xavantes hoje é o agronegócio e a expansão ilegal da fronteira agrícola por meio da invasão e da grilagem das terras indígenas. Índio ignorante? Me desculpem, mas ignorante é quem acha que índio é burro, preguiçoso, não trabalha e outras coisas absurdas que a gente escuta com frequência por aí.

Deixe-me relembrar um pouquinho da história dos povos indígenas: “Desde que o mundo é mundo, os índios já estavam aqui neste território chamado Brasil”. Vivendo e sobrevivendo em sociedade, nômades ou permanentes, com seus costumes, cultura e língua própria. Agora de quem seria o direito legítimo a terra? Deles ou dos invasores, no caso, os ocidentais brancos?

Eles perceberam que não podem lutar sozinhos. Por isso, precisam se abrir para o Brasil, para o mundo. Segundo Jurandir, “a visitação é a forma de uma janela para nossa casa. Vocês vêm aqui e decidem se continuam reverenciando aos acadêmicos e autores de livros didáticos que estereotipam a nossa cultura e nos chamam de índio”.

Portanto: “A presença de vocês é uma maneira de vocês terem outra ideia, outro olhar. Nossa filosofia é receber o brasileiro e extinguir este estereótipo”. Com isso, me sinto não só no dever e na obrigação de contar para o mundo o que eu vi e vivi lá, de forma simples e objetiva, mas ainda de abraçar a causa indígena.

De seu cotidiano, destaco:

  • Xavantes são muito trabalhadores. O dia na aldeia começava entre 3h e 4h da manhã com rituais de danças circulares. Em seguida, há o banho gelado no rio. O frio era forte, afinal, no cerrado a amplitude térmica (diferença entre temperaturas máxima e mínima) chega a 25 graus;
  • Xavantes são muito inteligentes e espertos. Além de conhecerem suas tradições, rituais de passagem, artes de guerra, medicina natural, agricultura, caça, técnicas agrícolas e de bioconstrução, artesanato e artefatos, também conhecem das leis dos “brancos” e, por consequência, dos seus direitos, de respeito, de didática, de articulação política, de liderança e de distinções entre formas de convívio social. Ganhamos aulas de diplomacia e resistência;
  • Xavantes são sonhadores e sonho para eles é muito sério. É através dos sonhos que se comunicam com o outro plano, com a espiritualidade. É dos sonhos que saem as orientações para a vida, para as decisões que vão influenciar o dia a dia. É assim que eles equilibram o plano físico e espiritual. Xavantes não têm pajés, têm sonhadores;
  • Xavantes são estrategistas. Nos recebem em suas terras, contam suas histórias, passam suas mensagens, mas não revelam seus segredos, dificilmente nos convidam para suas casas e são desconfiados, com toda a razão;
  • Xavantes são coletivos. Não existe espaço para individualismo por lá. As lideranças estão sempre pensando em como dividir para agregar. Em uma verdadeira aula de como se constrói uma sociedade justa, ouvi do ancião Paulo, uma das lideranças, uma frase que me marcou e que resume bem esse espírito: “Os europeus se orientam para multiplicar, vocês brasileiros só pensam em somar, em acumular e nós, xavantes, somos orientados para dividir”.
povo indígena

Foto: Marianne Costa

A Escola e a Diversidade

Conhecemos outras lideranças, como Eurico e Caime, professores da escola local, que vai até o 9º ano do ensino fundamental, e Paulo, tio de Jurandir, um dos meninos que também viveu fora, que fala um ótimo português e é um ótimo contador de histórias.

Podíamos passar horas e horas ouvindo todos eles contando sobre suas vidas, passado e presente de lutas por direito à terra, à educação, à sobrevivência. Histórias que inspiram e nos fazem repensar o quanto e pelo que já tivemos que lutar até hoje.

Para os professores, a luta atual é pela manutenção e adaptação do ensino na língua e cultura xavante na escola formal, que insiste em materiais didáticos tradicionais e padronizados Brasil afora. Como ensinar a uma criança xavante que o Brasil foi descoberto em 1500 por um português, sabendo que seu povo já estava ali há gerações anteriores? Como explicar as estações do ano de forma definida e com neve para aqueles que vivem e se criaram no coração do cerrado brasileiro?

Os xavantes seguem na sua luta, se juntando a outras lideranças de povos indígenas para mostrar que, assim como existem 254 povos indígenas somente no Brasil, com mais de 150 línguas diferentes sendo faladas, existem no mínimo 255 versões desta história e de todas as demais disciplinas “ensinadas” na escola.

 

O Ritual Noni

Tivemos o privilégio de acompanhar parte do ritual de iniciação dos meninos. Xavantes acreditam no ciclo da vida e respeitam as suas fases. Os meninos, durante a adolescência, passam cinco anos vivendo no que eles chamam a Casa dos Solteiros. Depois deste tempo, vão passar por meses em um ritual de iniciação que envolve diversas provas de força e resistência.

Chegamos exatamente no mês das corridas. Todos os dias eles correm, apostando entre eles. Alguns dias as meninas correm também. Todo o ritual é acompanhado por madrinhas e padrinhos mais velhos e já casados, que também possuem seus momentos durante os meses de ritual.

Nos dias que estávamos lá pudemos acompanhar a rotina diária de uma linda dança circular, acompanhada de cantos xavantes, que aconteciam diariamente por volta das 4h da manhã e 3h da tarde (novamente, horários aproximados para quem não olhou o relógio em nenhum momento).

No primeiro dia fomos convidados a observar e aprender e só a partir do segundo dia convidados a integrar as atividades. Tudo acontecia normalmente, sem nenhuma alteração ou interferência pela nossa presença. Nada para inglês ver, o que dava muita naturalidade à nossa experiência.

 

As Mulheres Xavantes

Nosso dia a dia na aldeia e até então dos demais grupos envolvia pouquíssimo contato com as mulheres. Além da questão cultural (não sei se tímidas seria a palavra, mas elas não costumavam nos olhar nos olhos), a barreira da língua é com certeza um fator limitante. Apesar de aprenderem o português na escola, a maioria delas não entende ou fala a língua.

Fomos novamente privilegiados, e neste caso privilegiadas, pois conversando com o professor Eurico sobre o dia a dia das mulheres e meninas, contando das nossas curiosidades como por que quase ninguém tinha sobrancelhas e por que usavam as roupas que usavam.

Ele nos confessou que elas também eram muito curiosas com relação a nós: por que usávamos brinco (na cultura xavante, apenas os homens furam a orelha) ou por que pintávamos o cabelo. O professor teve a ideia de propor uma roda de conversa entre as mulheres do grupo e as meninas xavantes. E foi embaixo de um pé de pequi que fizemos uma roda de cadeiras e batemos muitos papos.

Infelizmente, com a tradução de um homem, o professor Eurico, mas que teve seu mérito e boas intenções ao propor esta aproximação. Uma experiência única poder olhar nos olhos delas, darmos boas risadas juntas sobre hábitos como maquiagem, depilação, óculos escuros e calças. Sim, mulheres xavantes não usam calças compridas.

E algo que me marcou: elas não têm o hábito de se olhar no espelho. A maioria pareceu nem ter espelho e ficou claro que se contentam com o reflexo da própria imagem nas águas do rio. Achei bonito, poético. E naquele dia percebi que eu também não havia me olhado no espelho desde que chegara ali. Refleti sobre como me olhar no espelho naquele contexto no qual a aparência era tão secundária não me fez falta.

Então conclui enquanto sociedade o quanto estamos doentes e os sacrifícios que fazemos, o dinheiro que investimos, o valor que damos só às aparências. Cuidamos tanto do nosso exterior que deixamos o interior adoecer.

E foi aí, neste espelho metafórico, que eu percebi um dos segredos da vitalidade, da força, da resistência xavante: o interior deles é forte, saudável porque é para dentro que eles olham quando sonham, quando tomam suas decisões, quando seguem o ciclo da vida.

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Foto: Marianne Costa

A visitação

Para participar de uma experiência desta é preciso com certeza abrir mão de conforto em troca de profundidade na experiência. No meu caso, o cansaço da viagem longa logo se dissipou e deu lugar à excitação e curiosidade pelo novo, pelo desconhecido.

A minha fala sempre presente e até exagerada às vezes deu lugar a muito silêncio. Reconhecer que aquele não era meu momento foi meu maior exercício de lugar de fala. Eu não estava ali para falar, mas sim para ouvir. Ouvir com os ouvidos e também com o coração. Ouvir as palavras ditas, mas principalmente àquelas não ditas.

Incrível como o excesso de tecnologia, de luzes e ruídos da cidade grande dita desenvolvida rapidamente consome nossa energia e dissipa nossa atenção e a verdadeira presença. Foi assim que eu senti ali a presença. O sentido e o significado de estar presente, algo que só a experiência revela, pois não pode ser traduzido em palavras.

Pude sentir como há muito tempo eu não sentia outras pessoas presentes e eu mesma presente, com eles e comigo. Nossa, quantas saudades eu estava de estar com pessoas de verdade e também comigo mesma.

Dormíamos alguns em redes, outros em barracas. Por ser minha segunda vez numa experiência em terra indígena, logo escolhi minha rede, uma das melhores descobertas que fiz nas minhas viagens. O povo do Norte e do Nordeste é que sabe das coisas: dormir em rede é bom demais. As costas se encaixam, a rede te abraça e por fim aquele balanço te embala num sono que há muito eu não tinha lembrança.

A noite fria, o céu sujo apenas com a poeira das estrelas e o ar puro que nos últimos dias se tingiu com o fino pó do barro vermelho espalhado com o soprar forte do vento. Nos hospedamos na escola. Nada de visitar ou entrar na casa de ninguém sem ser convidado. Os cachorros tratariam de lembrar qualquer um que por acaso esquecesse.

Os banhos eram no rio. Mulheres de um lado, homens do outro, assim como sempre foi e sempre será por lá. O frio já ia chegando com a ida do sol, e era bom sermos breves.

No primeiro dia, aquela saudade do chuveiro quente logo passou. Incrível como a gente se acostuma rápido com o que é bom e percebe que estes nossos pequenos luxos do dia a dia vêm mesmo é para nos compensar e fazer esquecer do que deixamos para trás ao abraçar a vida urbana, caótica, barulhenta, poluída, fria, distante.

Minha primeira e maior lição desta viagem é: visitar um povo indígena requer humildade.

Reconhecer a nossa insignificância no universo, nossos privilégios enquanto homem e mulher brancos, que pouco esforço precisa fazer para sobreviver, é, no mínimo, um exercício.

Eles são ricos sem disporem de dinheiro. São alegres sem usarem drogas. São sábios sem dependerem de mídias nem internet. São solidários sem pieguice. São espiritualizados sem instituições religiosas. São fiéis aos amigos.

Estar diante da sabedoria ancestral, de um povo que vive e sobrevive, apesar das adversidades, por gerações e gerações, e que passa de pai para filho os conhecimentos valiosos adquiridos sobre a natureza, sobre a Terra e além dela, sobre ciclo da vida, da morte, sobre sobrevivência e que só recentemente teve acesso ao que chamamos de tecnologia como livros, audiovisual, computador, é uma experiência singular. Sim, impressiona.

Tive outras lições, algumas delas muito pessoais. Mas gostaria de deixar aqui um convite. Saia da sua zona de conforto na sua próxima viagem. Permita-se um exercício de entrega, de encontro consigo mesmo através de uma experiência desta. Se vai ser a primeira ou uma das primeiras vezes, não precisa começar logo de cara visitando um povo indígena. Comece por uma comunidade tradicional próxima a você.

Entre os povos e as comunidades tradicionais do Brasil estão quilombolas, ciganos, matriz africana, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros, caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, ciganos, açorianos, campeiros, varzanteiros, pantaneiros, caatingueiros, entre outros.

Mas só faça isso se estiver aberto e disposto a exercer humildade. Pois, posso lhe afirmar através da minha experiência privilegiada de estar em comunidades tradicionais várias vezes ao ano em função do meu trabalho, que o benefício e o impacto positivo vai ser ainda maior para você do que para aqueles que vão te receber de braços aberto e com o coração cheio de amor.

 

Obs.: Parabenizo meu amigo Israel Waligora pela persistência, sensibilidade e amor com que desenvolveu esta experiência, à convite dos xavantes da Aldeia Etenhiritipá. Você pode conhecer pelo site.

 

Marianne Costa

Turismóloga, fundou a Vivejar e foi uma das fundadoras da Raízes Desenvolvimento Sustentável e finalista do Prêmio Empreendedor Social de Futuro 2012

 

Esse artigo foi publicado primeiro em: https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2018/08/visitar-um-povo-indigena-requer-humildade.shtml